quarta-feira, 25 de abril de 2007

Roger Waters no Rio de Janeiro-2007











Após o que se poderia chamar de reapresentação ao vivo da cena quase inicial do filme The Wall, com as pessoas amontoadas, recebendo jatos d'água, revistas da polícia e quejandos, 35 mil fãs se aglomeraram na praça da Apoteose para assistir o segundo show de Roger Waters no Brasil.

Camisas sendo vendidas a cinqüenta reais, muita gente já tendo trazido de casa sua indumentária de fã. Da banda, obviamente: os momentos mais "solo" de sua apresentação, bem menos extensos desta vez, o público acompanhou em silêncio, mas atento, graças à parafernália audiovisual, que funcionou como um relógio do início de "Time" durante todo o tempo.

Aliás, que telão era aquele no fundo do palco? Os outros pareciam pálidas sombras, ao lado do palco e na torre de controle de som ao meio da praça. Era luz emitida, e não refletida, obviamente - uma gigantesca tevê de alta definição, traduzindo os ápices climáticos das canções em estímulos visuais. À frente do palco, um enorme prisma feito de lasers trazia a óbvia citação à capa do álbum-tema da apresentação. Mas calma, isso foi mais para o final. Vamos de acordo com o set-list.

Abertura com "In The Flesh?", como seria previsível. A primeira parte inteira do show foi uma repassada em pontos-chave da discografia de Waters dentro e fora do Floyd. Fechando a suíte "The Wall", logo em seguida veio "Mother", e depois "Set the Controls for the Heart of the Sun", a primeira música mais expressiva feita pro Waters dentro da banda de Syd Barrett.

Seguiu-se o tributo involuntário a Gilmour, o primeiro pedação da obrigatória "Shine on You Crazy Diamond", bem como o momento de congraçamento via telefonia móvel em "Wish you Were Here" (o que mais se via na platéia nessa hora eram pessoas ligando para quem não pôde ir ao show e tentando repassar um pouquinho da emoção pelo áudio do celular) e a surpreendente "Have a Cigar". O guitarrista teve que solar acompanhado do solfejo clássico de Gilmour em "Wish You Were Here", não houve jeito.

No telão, um antigo rádio de ondas curtas e uma garrafa de Johnnie Walker Red Label (Waters sempre teve bom gosto para bebidas), que retornou em outros momentos do show, além de servir à óbvia função de passar as estações na clássica transição do álbum.

Depois o buraco se instalou mais embaixo - poucos acompanharam o trecho lírico escolhido por Roger para representar o álbum "The Final Cut", "Southampton Dock" e "Fletcher Memorial Home" - com um ótimo clip ao fundo mostrando, em volta de uma figura humana sombria, uma casa vazia cheia de retratos de criaturas como Bush e Bin Laden e pichações de palavras de ordem de Pinochet e Stalin ("a morte soluciona todos os problemas - sem pessoas, sem problemas") nas paredes em ruínas.
Foi o início visível de uma clara tomada de posição de Waters, algo como uma compensação por ele estar agora se entregando a um modelo de performance tão amplamente criticado por si próprio na época de "The Wall": o artista endeusado no palco distante e a massa amorfa e fascinada na platéia. O viés político do show trazia claramente uma proposta de aliciamento para mudanças sociais pacifistas e anti-imperialistas, mostrando como os fins podem justificar, nesse caso, os meios. Podem? Uma coisa é certa, não foi por acaso que Waters deu atenção especial à América Latina nessa turnê.

Um astronauta inflável abria caminho para a música-síntese da carreira solo do baixista do Pink Floyd, a chamada "Perfect Sense", que trouxe uma curiosa evidência do complexo sistema de som que o show trouxe à praça da Apoteose. As torres de alto-falantes no perímetro criaram um sistema "surround" poderoso, que fez com que no refrão da música vozes de multidão surgissem como que do meio da gigantesca platéia, apesar de notoriamente o público carioca não estar familiarizado com essa canção.

O resultado foi uma perplexidade e um entusiasmo induzido como este resenhista nunca havia visto em uma apresentação ao vivo. Essa manobra quase mágica de acústica fez com que o lance seguinte parecesse ter sido previsto: quase ao final da música, o som em um volume tão alto como antes não havia estado durante o show, de repente uma explosão (relacionada com um momento no telão em que um torpedo atinge um estádio) corta a música e as luzes em silêncio. Mais perplexidade.

Roger pediu desculpas e, depois de quinze minutos aproximadamente, o show voltou à carga, dessa vez com um monólogo contando uma história do baixista quando ele tinha 17 anos e foi de carro com um amigo para o Líbano, sendo bem recebido por nativos hospitaleiros. Eis a inferência de Waters, que poderia ser a de qualquer um de nós: são essas pessoas que devemos chamar de inimigos? Quem manipula os conceitos de amizade e inimizade tomando por base territórios (e as riquezas naturais dos territórios), e não pessoas?

A música em questão, "Leaving Beirut" engrenou com uma simulação de história em quadrinhos (magnificamente desenhada, por sinal) no telão. Um recurso engenhoso, pois pelos balões era possível acompanhar, além de comentários, a letra da canção, emblemática e diretamente endereçada a alguém:

"Are these the people that we should bomb / Are we so sure they mean us harm? /Is this our pleasure, punishment or crime / Is this a mountain that we really want to climb / The road is hard, hard and long / Put down that two by four / This man would never turn you from his door
Oh George! Oh George! / That Texas education must have fucked you up when you were very small"
Nada mais apropriado a seguir do que a alimária de Animals se fazer representada por "Sheep", com os balidos quadrafônicos enchendo o ambiente. O já tradicional porco inflável dessa vez contou, na inscrição das palavras de ordem em seu corpo, com o auxílio luxuoso da Flesh Beck Crew, companhia de grafiteiros de elite que já fincou bandeira no circuito de shows carioca (além de incursões no mundo da moda, fizeram a decoração externa dos monumentos do Tim Festival espalhados pela cidade) e causou sensação quando, após passear pela linha de frente da multidão, perdeu as amarras e foi subindo rumo à estratosfera, em meio aos aviões que passavam bem rente ao sambódromo. Quase se cogitou que o próximo número seria "One of These Days", para aproveitar o som do acidente aéreo que se daria com a colisão suína...




Enfim, o intervalo. Como no show do Rush no Rio, uma imagem em lenta progressão deu conta do tempo entre as partes - no caso, a chegada da lua a partir do centro do telão. Comoção generalizada com o início do "Dark Side", "Speak to Me" e "Breathe". Luzes amarelas tomavam a cena. Depois fomos compreendendo a organização das imagens no telão, regida por cores: "On The Run" (com pessoas pulando apropriadamente na platéia, ao som de um dos primeiros "trances" da história) alaranjada, "Time" predominantemente azul (mostrando imagens de um garoto fumando seu baseado), "Great Gig" púrpura (Katie Kissoon cantando seu útero pra fora enquanto pela primeira vez no telão a Lua cedia lugar à mãe Gaia, caprichosa e tempestuosa), "Money" verde etc.

"Us and Them" trouxe a certeza de que nenhuma daquelas várias imagens vinha à toa: na parte da letra que diz "with, without / and who'll deny / that's what the fightings are all about" uma bomba de petróleo trabalhava contra o sol desértico. Tivemos em seguida a apoteose do esquema de cores, apropriadamente, com "Any Colour You Like", o que demonstrou o quanto estamos com o padrão Globo - Hans Donner de design na cabeça: é só vermos esferas transparentes e arco-íris em cascata e logo se pensa em "Globelezas" e vinhetas congêneres... triste.

Ficou a impressão, após o término da suíte, que a apresentação do álbum ficou menos "animada" do que a primeira parte - talvez por se concentrar mais na música que em pirotecnias, talvez por ter sido realmente um problema a questão do som na primeira parada do show e então tiveram que reduzir o volume geral - o fato é que, ao contrário do show do "The Wall" original, onde a primeira parte apresentava o grupo diretamente em contato com o público e a segunda, já sob a muralha, mantinha-se mais com projeções dos desenhos de Gerald Scarfe e figuras infláveis, nesse concerto Waters direcionou o interesse para o som de forma mais manifesta no segundo momento, para o trunfo de sua apresentação, o próprio "Dark Side of the Moon".

Outra certeza: nenhum conjunto obteve tanto sucesso em incorporar sons do dia-a-dia em suas músicas como o Pink Floyd. Essa revolução traz marcas até hoje, propiciando que, por exemplo, a passagem de um avião sobre o Sambódromo, ou a vida da cidade expressa logo ao lado pela passagem contínua de carros sobre o viaduto que leva ao túnel Santa Bárbara, seja vista como uma continuação do movimento das pessoas que falam entre as músicas e por vezes no meio delas, ou das imagens urbanas de cidadãos andando cada um para o lado, perseguindo suas vidas pelo écran do fundo do palco. Tudo se interconecta absurdamente bem.

Complementando então o show, voltamos para o outro lado da muralha no bis: "Vera", "Bring the Boys Back Home" em versão algo estendida e com referências específicas à Palestina e a Israel, "The Happiest Days" emendando com "Another Brick In The Wall pt.2", que apresentou aos fãs de Floyd o Coro Infantil da UFRJ (não se soube das vozes o que realmente foram os garotos cantando e o que era playback, mas vá lá) e a obrigatória “Comfortably Numb”.

Algo do Pink Floyd, além da presença de Waters e dos fãs, estava com certeza ontem na Apoteose: a genialidade de fundir vida e música em proporções sublimes dentro de um trabalho que ganha outras dimensões quando apresentado para uma multidão. Não excluindo aí o esquema do show-business, mas misturando-se a ele em uma parceria e embate onde há ganhos, além das óbvias perdas. Como Waters diria, "It all makes perfect sense".

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